368) Bolsa-família: fora de foco?
Transcrevo importante artigo do jornalista Ali Kamel no jornal O Globo (18/04/06):
O corte certo
ALI KAMEL
O Globo, 18 abril 2006
O Brasil tem uma lei que rege o programa Bolsa Família. Enviada ao Congresso como medida provisória em 2003, ela foi aprovada em janeiro de 2004 e é muito clara: os beneficiários devem ter uma renda familiar per capita de até R$ 100 (na semana passada, o governo alterou esse limite para R$ 120, mas isso, agora, não vem ao caso). A mesma lei diz que os beneficiários só podem receber o dinheiro se mantiverem os filhos na escola e se estiverem em dia com os programas de saúde do governo – as tais condicionalidades. Mas, em nosso país, vigora um estranho estado de coisas: as leis devem ser seguidas “mais ou menos”. Esse exotismo certamente explica o nosso atual desenvolvimento econômico e civilizatório.
Estudos feitos a partir da PNAD-2004 mostram claramente que o dinheiro tem ido para pessoas que estão fora do público-alvo determinado pela lei (enquanto muitos do que estão no público-alvo nada recebem). Além disso, no quarto ano do mandato do presidente Lula, as condicionalidades de saúde são mera ficção: nada, absolutamente nada, foi feito nesse campo. Na área da educação, toda aquela promessa de informatizar o controle da presença escolar se arrasta indefinidamente, com muitas justificativas: formação de cartéis que fazem disparar os preços dos cartões e dos computadores, entraves impostos por licitações complicadas etc.. O fato é que a presença escolar continua sendo acompanhada de maneira capenga e pouco confiável. A lei não é cumprida. Que governos ajam assim, é algo que já não me surpreende.
O problema é que pesquisadores sérios têm analisado os programas sociais à luz do que acreditam ser o certo e o errado e não à luz do que diz a lei, e, com isso, tendo ou não esse objetivo, acabam por chancelar os programas do governo. É o caso de Ricardo Paes de Barros — no Brasil, um dos mais competentes e brilhantes analistas de políticas sociais. Num estudo recente, ele diz, com base na PNAD-2004, que a proporção dos que ganham o Bolsa Família e não estão entre os 40% mais pobres do país é de 17%. Ocorre que a lei não manda atender os 40% mais pobres, mas aqueles que têm renda familiar per capita de até R$ 100. Será então correto usar o corte dos 40% mais pobres ou usar o corte dos que têm renda per capita de até R$ 100? Se o corte de R$ 100 for o utilizado, a proporção dos que recebem o Bolsa Família e têm renda superior ao público-alvo pula de 17% para 37%.
O mesmo estudo critica as aposentadorias especiais a idosos pobres e deficientes físicos pobres, porque 31% dos beneficiários têm renda domiciliar per capita acima de meio salário mínimo. Mas, novamente, por que usar este corte se a lei que instituiu as aposentadorias especiais determinou que os beneficiários sejam apenas aqueles com renda familiar per capita menor do que um quarto de salário mínimo? Se o corte utilizado for esse, 60,4% dos beneficiários, e não 31%, têm renda superior ao limite estabelecido em lei.
Em outro artigo, Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho e Samuel Franco exaltam a importância de programas de transferência de renda com condicionalidades na redução da desigualdade registrada no Brasil: entre 2001 e 2004, o coeficiente de Gini caiu 0,024. A rubrica “outros rendimentos”, da Pnad, registra a renda oriunda dos programas sociais, e teve um inchaço substancial nas camadas menos favorecidas: em 1999, a proporção de pobres que declaravam ali alguma renda era quase zero e, em 2004, pulou para cerca de 60%. O exercício que os pesquisadores fazem é zerar a renda declarada nessa rubrica e verificar o efeito disso no coeficiente de Gini. “Na ausência dessas transferências, a desigualdade teria passado por uma redução 20% inferior à efetivamente ocorrida”, dizem eles. Outros fatores explicariam a queda na desigualdade: 12% da redução seriam devidos a mudanças nas diferenças de escolaridade entre os trabalhadores, 2% viriam da queda no desemprego e 8% viriam do aumento do salário mínimo. No artigo, os autores concluem, portanto, que é grande a importância de uma rede de proteção social “centrada no programa Bolsa Família”: “Sua contribuição para a queda na desigualdade foi 2,5 vezes maior que a do aumento do salário mínimo”, dizem.
Ocorre que o dinheiro das aposentadorias a idosos e deficientes físicos pobres, um programa sem condicionalidades e com grande desvio de foco, também é declarado em “outros rendimentos”, e é um montante expressivo de recursos: se o governo gastou em 2004 R$ 5,7 bi com o Bolsa Família, gastou mais com as aposentadorias especiais — R$ 5,8 bi. Enquanto o benefício médio do Bolsa Família em 2004 foi de R$ 68, o valor das aposentadorias nunca é menor do que o salário mínimo — R$ 260 naquele ano. Assim, pode-se chegar a duas conclusões: o papel na redução da desigualdade está bastante exagerado, no caso do Bolsa Família, e subestimado, no caso do salário mínimo, embora parte da importância do mínimo venha de um programa mal focado e que não pede nada em troca aos beneficiários.
Mais uma vez fica provado: se as leis fossem cumpridas, o Brasil seria outro. Refiro-me obviamente ao governo, mas os pesquisadores poderiam contribuir se seus estudos refletissem as exigências das leis, para que os programas pudessem ser mais bem julgados. Neste caso, se o governo cumprisse a lei, os de fato necessitados seriam ajudados, com um gasto muitas vezes menor. E o dinheiro que sobrasse iria para a educação, o instrumento mais eficaz na emancipação da pobreza. Basta olhar o próprio estudo dos pesquisadores: se com parcos recursos a educação já respondeu por 12% na redução das desigualdades, o que não faria com mais?
OBS.: A renda do público-alvo foi analisada antes do recebimento dos benefícios, através do artifício de subtrair dela o dinheiro registrado em “outros rendimentos”, a rubrica em que a PNAD aloca os recursos oriundos de programas sociais.
ALI KAMEL é jornalista.
O corte certo
ALI KAMEL
O Globo, 18 abril 2006
O Brasil tem uma lei que rege o programa Bolsa Família. Enviada ao Congresso como medida provisória em 2003, ela foi aprovada em janeiro de 2004 e é muito clara: os beneficiários devem ter uma renda familiar per capita de até R$ 100 (na semana passada, o governo alterou esse limite para R$ 120, mas isso, agora, não vem ao caso). A mesma lei diz que os beneficiários só podem receber o dinheiro se mantiverem os filhos na escola e se estiverem em dia com os programas de saúde do governo – as tais condicionalidades. Mas, em nosso país, vigora um estranho estado de coisas: as leis devem ser seguidas “mais ou menos”. Esse exotismo certamente explica o nosso atual desenvolvimento econômico e civilizatório.
Estudos feitos a partir da PNAD-2004 mostram claramente que o dinheiro tem ido para pessoas que estão fora do público-alvo determinado pela lei (enquanto muitos do que estão no público-alvo nada recebem). Além disso, no quarto ano do mandato do presidente Lula, as condicionalidades de saúde são mera ficção: nada, absolutamente nada, foi feito nesse campo. Na área da educação, toda aquela promessa de informatizar o controle da presença escolar se arrasta indefinidamente, com muitas justificativas: formação de cartéis que fazem disparar os preços dos cartões e dos computadores, entraves impostos por licitações complicadas etc.. O fato é que a presença escolar continua sendo acompanhada de maneira capenga e pouco confiável. A lei não é cumprida. Que governos ajam assim, é algo que já não me surpreende.
O problema é que pesquisadores sérios têm analisado os programas sociais à luz do que acreditam ser o certo e o errado e não à luz do que diz a lei, e, com isso, tendo ou não esse objetivo, acabam por chancelar os programas do governo. É o caso de Ricardo Paes de Barros — no Brasil, um dos mais competentes e brilhantes analistas de políticas sociais. Num estudo recente, ele diz, com base na PNAD-2004, que a proporção dos que ganham o Bolsa Família e não estão entre os 40% mais pobres do país é de 17%. Ocorre que a lei não manda atender os 40% mais pobres, mas aqueles que têm renda familiar per capita de até R$ 100. Será então correto usar o corte dos 40% mais pobres ou usar o corte dos que têm renda per capita de até R$ 100? Se o corte de R$ 100 for o utilizado, a proporção dos que recebem o Bolsa Família e têm renda superior ao público-alvo pula de 17% para 37%.
O mesmo estudo critica as aposentadorias especiais a idosos pobres e deficientes físicos pobres, porque 31% dos beneficiários têm renda domiciliar per capita acima de meio salário mínimo. Mas, novamente, por que usar este corte se a lei que instituiu as aposentadorias especiais determinou que os beneficiários sejam apenas aqueles com renda familiar per capita menor do que um quarto de salário mínimo? Se o corte utilizado for esse, 60,4% dos beneficiários, e não 31%, têm renda superior ao limite estabelecido em lei.
Em outro artigo, Ricardo Paes de Barros, Mirela de Carvalho e Samuel Franco exaltam a importância de programas de transferência de renda com condicionalidades na redução da desigualdade registrada no Brasil: entre 2001 e 2004, o coeficiente de Gini caiu 0,024. A rubrica “outros rendimentos”, da Pnad, registra a renda oriunda dos programas sociais, e teve um inchaço substancial nas camadas menos favorecidas: em 1999, a proporção de pobres que declaravam ali alguma renda era quase zero e, em 2004, pulou para cerca de 60%. O exercício que os pesquisadores fazem é zerar a renda declarada nessa rubrica e verificar o efeito disso no coeficiente de Gini. “Na ausência dessas transferências, a desigualdade teria passado por uma redução 20% inferior à efetivamente ocorrida”, dizem eles. Outros fatores explicariam a queda na desigualdade: 12% da redução seriam devidos a mudanças nas diferenças de escolaridade entre os trabalhadores, 2% viriam da queda no desemprego e 8% viriam do aumento do salário mínimo. No artigo, os autores concluem, portanto, que é grande a importância de uma rede de proteção social “centrada no programa Bolsa Família”: “Sua contribuição para a queda na desigualdade foi 2,5 vezes maior que a do aumento do salário mínimo”, dizem.
Ocorre que o dinheiro das aposentadorias a idosos e deficientes físicos pobres, um programa sem condicionalidades e com grande desvio de foco, também é declarado em “outros rendimentos”, e é um montante expressivo de recursos: se o governo gastou em 2004 R$ 5,7 bi com o Bolsa Família, gastou mais com as aposentadorias especiais — R$ 5,8 bi. Enquanto o benefício médio do Bolsa Família em 2004 foi de R$ 68, o valor das aposentadorias nunca é menor do que o salário mínimo — R$ 260 naquele ano. Assim, pode-se chegar a duas conclusões: o papel na redução da desigualdade está bastante exagerado, no caso do Bolsa Família, e subestimado, no caso do salário mínimo, embora parte da importância do mínimo venha de um programa mal focado e que não pede nada em troca aos beneficiários.
Mais uma vez fica provado: se as leis fossem cumpridas, o Brasil seria outro. Refiro-me obviamente ao governo, mas os pesquisadores poderiam contribuir se seus estudos refletissem as exigências das leis, para que os programas pudessem ser mais bem julgados. Neste caso, se o governo cumprisse a lei, os de fato necessitados seriam ajudados, com um gasto muitas vezes menor. E o dinheiro que sobrasse iria para a educação, o instrumento mais eficaz na emancipação da pobreza. Basta olhar o próprio estudo dos pesquisadores: se com parcos recursos a educação já respondeu por 12% na redução das desigualdades, o que não faria com mais?
OBS.: A renda do público-alvo foi analisada antes do recebimento dos benefícios, através do artifício de subtrair dela o dinheiro registrado em “outros rendimentos”, a rubrica em que a PNAD aloca os recursos oriundos de programas sociais.
ALI KAMEL é jornalista.
4 Comments:
Ah, as pesquisas...
Algumas considerações, se me permite, sobre o último parágrafo. Vejamos:
1. "se as leis fossem cumpridas"
Evidente que as leis existem para que sejam cumpridas, ou seja, são elementos que condicionam a sociedade. No entanto, há leis justas e leis injustas, todas legítimas, e disso não podemos nos esquecer jamais! Outro ponto, e esse é patente no Brasil, quando a lei não "agrada" ela é "facilmente revogada ou derrogada". Enfim, aqui não é o lugar mais indicado para tomarmos como base e exemplo a bela teoria de construção das leis, de que esta nasce dos anseios do povo. Não, ela não nasce de anseios populares. Na maior parte dos casos ela responde a interesses de ordem política ou econômica. O caso do bolsa família é um exemplo descarado disso.
Bolsa família me faz lembra do bla bla bla em que se pautou a campanha do governo atual: chegar ao final com todos os brasileiros fazendo, pelo menos, as três refeições básicas. Alguém ainda acredita em fadas, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa? Só rindo para não chorar!
2. "os pesquisadores poderiam contribuir se seus estudos refletissem as exigências das leis"
O fato primordial não é de que os estudos devem refletir as leis, mas, sim, de que todo e qualquer estudo científico necessita estar submetido a premissas de validade ou teorias que estabeleçam o contraponto dos dados. No caso das pesquisas citadas, pelo que o jornalista afirma, o estudo se pautava na análise do funcionamento do sistema de uma política pública. Em sendo esse seu objeto, resta evidente que seu contraponto teórico é a legislação aplicável, eis que é premissa jurídica básica de Direito Administrativo que os entes públicos são obrigados a cumprir o que a lei estabelece (ao passo que para os entes privados, para conhecimento, tudo é permitido que se faça, desde que a lei não os proíba). Não levar isso em consideração, elaborando um estudo sem que a análise quantitativa verse sobre a realidade com base na lei, é o mesmo que aceitar um estudo físico que desconheça as leis físicas as quais o objeto está submetido.
3. "os programas pudessem ser mais bem julgados".
Que me perdoe o jornalista, mas para saber que fogo queima é preciso se queimar? Quem não conhece um exemplo sequer, de pessoas recebendo indevidamente benefícios sociais? Se ele não conhece, está convidado a vir até minha casa conhecer nossa ajudante. E o pior, o valor dessa bolsa família é quase insignificante. Mas, devo admitir, pra quem tem pouco, qualquer ajuda é providencial. No entanto, a nossa ajudante não estaria enquadrada dentre os beneficiários. Há um dito que diz que se o povo é corrupto, os governantes também o são. Quer maior verdade?
4. "se o governo cumprisse a lei, os de fato necessitados seriam ajudados"
Não retiro o valor moral da frase, porém, concordemos, chega dessa visão de Estado paternalista, que "protege" a população, que só faz nos manter nesse círculo vicioso. Oras, ao passo que os governos criam esses programas sociais, pautados na nossa história social e política de um “Estado paizão”, para servir a interesses ilegítimos, corruptos e politiqueiros, eles também criam formas de sugar ao máximo o que podem de nós, por exemplo, com uma política tarifária inaceitável. Cerca de 30% dos rendimentos de uma família vão para pagamento de impostos, outros 30% para gastos com o que, pela CF/88, seriam obrigações do Estado para com a população, os outros 40% dos rendimentos servem para sobreviver. A conclusão lógica é que está tudo muito errado por aqui.
5. "o dinheiro que sobrasse iria para a educação"
Oras, se seguirmos a argumentação do autor da matéria, ou seja, de que devemos observar o cumprimento das leis para a educação também. E a CF/88 é clara ao estipular a percentagem mínima da arrecadação que DEVE ser aplicada em educação. E isso, não ocorre como deveria. Fora que, se eventualmente sobrasse alguma coisa, os valores não iriam ser aplicados em nada, a não ser, quem sabe, para o pagamento da dívida pública. Qual o motivo? Eu já disse: o poder público DEVE fazer tudo o que a lei manda, e se não ela manda, não se tem que o fazer. É bem simples. Bom, até que poderia investir em algum projeto social, mas não seria pela bondade do governante. Seria para mostrar trabalho em períodos pré-eleitorais.
Creio que sejam essas as considerações.
Vivian Müller.
Umam "anônima" assinando parece uma contradição nos termos...
Em todo caso, agradeço os comentários argutos da Vivian Muller ao artigo do ALi Kamel postado por mim. Vou transmitir a ele os argumentos de nossa colega da Unimep, que demonstra um bom conhecimento de direito e de educação...
Prof. Paulo,
Pois não é que eu também tinha um blog aqui no blogspot e nem me lembrava!
Pode deixar que eu não vou ser mais uma "anonima".
Obrigado pela deferência!
No país do jeitinho vigorar "um estranho estado de coisas: as leis devem ser seguidas “mais ou menos”." não devia ser nenhuma surpresa
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